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sábado, 31 de agosto de 2013

TEXTO 199 - MISÉRIAS E GLÓRIAS DO XADREZ - 4.

PESQUISADO E POSTADO, PELO PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).

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SEXTA-FEIRA, 5 DE ABRIL DE 2013

Misérias e Glórias do Xadrez - 4

Misérias e Glórias do Xadrez - 4
Carlos Batista Lopes

Depois da II Guerra, nenhum outro esporte – admitindo seja um esporte - se tornou um palco tão acirrado da luta político-ideológica quanto o xadrez. O que, sem dúvida, tem relação com o imaginário que o cerca, a que já nos referimos.

Voltemos a 1946, quando, num quarto de hotel no Estoril, Alekhine morria sem amigos, sem admiradores e sem mulheres, banido dos torneios e competições – depois de vencido o nazismo, todos preferiam ver a lepra em pessoa no salão de jogos do que ver Alexander Alekhine circulando por lá.

Muita coisa mudara desde o torneio A.V.R.O, de 1938. A começar pelos dois desafiantes do campeão apontados por esse torneio. O americano Reuben Fine não tinha mais o xadrez como interesse principal: era agora um psicanalista, e não queria mais disputar o título.

Como demonstrou Edward Winter, somente 27 anos depois, em seu livro sobre a vitória de Fischer, Reuben Fine iria aparecer com a história de que havia declinado da disputa porque pressentira uma conspiração soviética para empalmar o título (cf. “Bobby Fischer’s Conquest of the World’s Chess Championship”, NY, 1973, págs. 4/5), conspiração da qual ele forneceu uma nova versão em 1989, numa carta para “Chess Life”. 

Em fevereiro de 1948, num telegrama à redação da “Chess Review”, Fine disse outra coisa: que suas “obrigações profissionais” (“professional duties”) o impediram de disputar o título. Em novembro do mesmo ano, na mesma revista, ele próprio escreveu que “eu estava trabalhando na minha dissertação de doutorado. Retirei-me [da disputa] porque não me preocupei em interromper minha pesquisa”. E, 10 anos depois, em 1958, ele reafirmaria, em seu livro “Lessons from My Games”: “Na época, eu havia iniciado minha nova profissão como psicanalista e estava impossibilitado de jogar” (págs. 151/152, cit. por Winter, “Unsolved Chess Mysteries -  9”).

As explicações bamboleantes de Fine não são apenas uma exibição de suas debilidades de caráter. São também a mostra de como a mal chamada “guerra fria” interferiu no xadrez. Somente quando Nixon e Kissinger – veremos depois a importância do último para a questão – chegaram à Casa Branca, é que Fine inovou os seus motivos para não disputar o campeonato mundial no imediato pós-guerra.

O outro desafiante apontado pelo A.V.R.O. era o extraordinário jogador estoniano Paul Keres. Mas agora a Estônia era uma das nações da URSS. Keres se tornara, portanto, cidadão soviético. E recém escapara de um julgamento, por ter participado de torneios organizados pelos nazistas durante a ocupação. Ao contrário do que uma vasta propaganda afirma, Keres jamais esteve preso, nem nessa época nem depois (v. o artigo do historiador estoniano – e pouco disposto em relação aos russos - Valter Heuer, “The Troubled Years of Paul Keres, the Great Silent One”, publicado em “New In Chess” nº 4, 1995). Mas é evidente que ele esteve sob investigação após a guerra.

A argumentação de Keres – que enviou uma carta a Molotov, ministro das Relações Exteriores – era a de que, estritamente, havia participado dos torneios promovidos pelos nazistas como jogador, sustentando-se durante a guerra com essa atividade. Jamais havia, ao contrário de Alekhine, passado desse limite. Não é inteiramente verdade, pois havia algumas declarações anti-soviéticas de Keres que foram publicadas pelos nazistas – mas, em geral, a tônica delas estava mais na independência da Estônia do que em ser contra a URSS. A questão política é que a Estônia estava ocupada pelos nazistas e não pelos soviéticos.

Também não é verdade, tal como alguns até hoje afirmam, que Paul Keres só tenha participado, durante a II Guerra, de torneios realizados em seu país. Cidades como Munique, Salzburg e Praga não ficam na Estônia. No entanto, Keres legitimou a vitória de Alekhine nos torneios que os nazistas organizaram nessas cidades, uma vez que era o único outro grande jogador a participar dessas promoções. O outros, eram mediocridades hoje esquecidas, exceto Bogolyubov – que, na época, descia aceleradamente o plano inclinado da decadência. Mas é necessário ressaltar que Keres recusou-se a disputar um match pelo campeonato mundial com Alekhine durante a guerra, um match que somente serviria para a propaganda nazista.

Posteriormente, o maior jogador soviético, Mikhail Botvinnik, faria uma defesa de Keres. Até por essa razão – embora não somente por ela - é impressionante que haja grassado a propaganda de que Keres foi impedido por Stalin de enfrentar Alekhine e, no torneio que decidiu, em 1948, o novo campeão mundial, foi obrigado a perder para Botvinnik. 

O conteúdo dessa propaganda é claro: Botvinnik não teria adquirido sua predominância sobre os demais por suas qualidades como jogador, mas porque era um privilegiado de Stalin, que até mesmo mandara a KGB (esta não existia ainda, mas o rigor histórico não é uma característica da propaganda anti-comunista) obrigar Keres - “com uma arma apontada para a cabeça”, diz um dos adeptos da tese - a perder para o oponente (cf. Taylor Kingston, “The Keres-Botvinnik Case: A Survey of the Evidence”, 1998. O autor, um anti-comunista, porém não um estúpido, faz uma ampla revisão do que foi escrito sobre o assunto. Depois de observar que não há prova, nem base nos resultados e no transcorrer das partidas, que sustente essa versão - e que tanto a viúva de Keres, Maria, quanto as pesquisas do estoniano Heuer, desmentem-na - ele conclui: “Francamente, poucas coisas me dariam mais prazer do que dizer que Keres, sob todos os aspectos um dos mais gentis cavalheiros que já avançaram um peão, foi trapaceado pelo mal-humorado stalinista Botvinnik. Poderia se chegar a isso, mas ainda não foi possível chegar a tanto [It may yet come to that, but has not quite yet]”. Nos 9 anos que decorreram desde que o artigo de Kingston foi publicado, todos os arquivos da URSS foram abertos - e nada foi descoberto que corroborasse a propaganda anti-comunista).

Porém, esse tipo de coisa não depende da realidade. Depende da estupidez e da dominação ideológica que faz com que alguns aceitem a mais absurda propaganda como se realidade fosse.

1948

A partir de 1941, Botvinnik havia surgido como o maior jogador do mundo. De certa forma, os soviéticos haviam mudado a forma de se jogar xadrez. Como observou Andrew Soltis em seu livro sobre Fischer (“Bobby Fischer Rediscovered”, 2003), os soviéticos desenvolveram a estratégia no sentido de superar as concepções vigentes na primeira metade do século XX, que tiveram seu principal expoente em Capablanca – o cuidado em conservar o material (ou seja, evitando a desvantagem quanto ao número de peças e peões), a abertura tranquila, da qual os oponentes saíam iguais ou quase iguais e, em seguida, o meio-jogo dirigido para obter um final superior. Em vez disso, os soviéticos começavam a luta mais intensa logo na abertura da partida, mesmo que fosse necessário temporariamente (ou não) perder algum material e criar algumas debilidades.

Porém, apesar de banido das competições, a FIDE não destituiu Alekhine do título, nem mudou a regra pela qual ele, e somente ele, poderia apontar o seu desafiante. Assim, quando Alekhine morreu, em março de 1946, o título estava vago. Chegou-se, então, a um acordo para a realização de um torneio que apontasse o novo campeão. O torneio foi jogado em Haia e Moscou entre os seis principais jogadores do mundo, que se enfrentaram cinco vezes entre si: o ex-campeão Max Euwe, os soviéticos Mikhail Botvinnik, Paul Keres e Vassily Smyslov, o polaco-americano Samuel Reshevsky e o polaco-argentino Miguel Najdorf – os dois últimos, considerados os melhores do continente americano, após a retirada de Fine.

Botvinnik venceu amplamente: conquistou 14 pontos em 20 possíveis, três pontos acima de Smyslov, segundo colocado. Começara um novo período para o xadrez. Em seguida, foram criadas regras para a disputa do título de campeão. Haveria torneios zonais, reunindo os países do mundo que eram membros da FIDE. Os vencedores desses torneios seriam classificados para o Torneio Interzonal, que apontaria os qualificados para o Torneio de Candidatos. O vencedor deste enfrentaria o campeão num match pelo título. O campeão manteria o título em caso de empate neste match e, em caso de derrota, teria direito a um match-revanche.

Essas novas regras mantiveram-se inalteradas até 1963, quando os kruschevistas permitiram o primeiro atropelo na disputa. Na época, não acharam ruim a conseqüência do atropelo: livraram-se de Botvinnik, para eles um “símbolo do stalinismo”. Mas estavam abrindo a porta do inferno, como se veria nos anos seguintes.

BOTVINNIK

Mikhail Botvinnik 




O novo campeão foi, provavelmente, o mais difamado homem da história do xadrez. Vimos acima como um autor ocidental, apesar de contestar a acusações a ele, o descreve como um “mal humorado stalinista”. Por que “mal humorado”? Somente porque este é o estereótipo que está na cabeça de quem escreve essas coisas. Sem dúvida, Mikhail Moseievitch Botvinnik era comunista. É um fenômeno típico dos efeitos da propaganda que os mesmos que acusam Botvinnik – e os soviéticos – de trapacearem, não discutem o fato, pois é impossível colocar isso em dúvida, de que ele foi um dos maiores jogadores que já existiram. Aparentemente, não se importam em admitir as duas coisas ao mesmo tempo.

Botvinnik não era notável apenas no xadrez. Formado aos 20 anos (1931) em engenharia elétrica, ele foi um dos pioneiros da eletrônica e, depois, da informática. Após a conquista do título mundial, interrompeu várias vezes a sua participação nas competições em função desses interesses profissionais.

Em xadrez, foi o professor de gerações de soviéticos. A escola que fundou, em Moscou, funcionou durante muito tempo como uma graduação superior para os jogadores da URSS. Não por acaso, formaram-se lá tanto Karpov quanto Kasparov – dois campeões mundiais.

Um excelente jogador brasileiro disse uma vez a este autor que considerava o estilo de Botvinnik “muito humano”. Não poderia haver maior contraste com isso do que a descrição de Kasparov sobre o “estilo frio, impiedoso” de Botvinnik (ver a segunda parte deste artigo).

Realmente, há algo no jogo de Botvinnik que é muito bem descrito pela palavra “humano”: ele não faz malabarismos ou ilusionismos no tabuleiro. Seus planos estratégicos são claros e inteligíveis e seus recursos táticos jamais se chocam com a estratégia. Como é evidente em seus textos, não se considera um gênio, mas um esforçado estudioso. Por isso, boa parte de suas vitórias foram devidas a uma rigorosa preparação anterior ao jogo, levando sempre em conta as características dos oponentes que ia enfrentar. 

Referimo-nos acima ao inventado “caso Keres”. Com ele, o padrão da propaganda anti-comunista foi estabelecido. Embora, pensando bem, não restava muito a esses propagandistas senão acusarem os soviéticos de trapaceiros. O que mais podiam fazer, em um esporte onde seus inimigos tinham uma hegemonia tão grande que, entre 1948 e 1972, todos os campeões e todos os desafiantes do campeão, foram soviéticos?

Assim, o circo estava pronto para a próxima batalha ideológica – naturalmente, sem que a anterior fosse jamais encerrada. Não se encerram batalhas que são travadas, antes de tudo, no plano da fantasia, senão quando um dos lados deixa de existir. Afinal, até hoje a “Veja” está tentando passar a figura de Che Guevara como o contrário do que ele foi – e certamente deve haver ainda uma meia dúzia de idiotas para acreditar...  

Botvinnik x Bronstein, 1951

Em 1948, mesmo ano da conquista de Botvinnik, realizou-se em Saltsjöbaden, Suécia, o primeiro Torneio Interzonal – etapa do processo para apontar o próximo desafiante do recém campeão. O soviético David Bronstein conquistou o primeiro lugar, classificando-se para o Torneio de Candidatos, a ser realizado em 1950. Nesse torneio, realizado em Budapeste, Bronstein também saiu vencedor. Era ele, portanto, o desafiante do campeão mundial.

Quando eles se reuniram para disputar o match decisivo, Botvinnik estava há três anos sem participar de competições, dedicado a seus afazeres profissionais. E, Bronstein, de todos os jogadores soviéticos, era aquele que Botvinnik detestava – do ponto de vista político, pessoal e enxadrístico. Deste último ponto de vista, Bronstein era um jogador sobretudo tático – o que, para um estrategista que dependia tanto de estudar e prever antecipadamente o que o oponente faria, é sempre uma dificuldade.



Bronstein



Bronstein era filho de um condenado por envolvimento nas conspirações dos “kulaks” - a burguesia agrária - contra o Estado soviético. Alguns relatos afirmam que o pai de Bronstein era um bukharinista ativo na década de 30 – isto é, um integrante da conspiração direitista de Bukharin, desbaratada em 1937/1938. O fato é que ele foi condenado em 1937 - e colocado em liberdade condicional em 1944. As histórias posteriores de Bronstein sobre essa época e seu modo habitual de agir – p. ex., era um desses jogadores que freqüentemente se referem a si mesmos na terceira pessoa (“então o mestre decidiu mover tal peça”, etc.) - mostram bastante bem porque ele não cativava a simpatia de Botvinnik. 

Apesar de não poder ainda legalmente morar em Moscou, foi permitido ao pai de Bronstein assistir ao match – o que, depois, serviu para que seu filho apresentasse essa permissão como uma tentativa de lembrá-lo do que poderia acontecer se vencesse o match... No entanto, mesmo no seu livro mais ressentido, “Aprendiz de Feiticeiro” (a edição inglesa é de 1995), onde chama seu oponente de 1951 de “um deus de lata da cultura socialista”, ele não se atreve a dizer que foi obrigado a perder de Botvinnik, embora, talvez, sejam piores as insinuações: “Um monte de absurdos foi escrito sobre isso. (....) Eu estava sujeito a uma forte pressão psicológica de várias fontes e cabia a mim render-me ou não a essa pressão”.

Passaram-se muitos anos até que Kasparov, em “Meus Grandes Predecessores”, tentasse promover Bronstein a “fundador do xadrez moderno” (sic). Só há uma razão para essa descoberta histórica de Kasparov: o anti-comunismo de Bronstein. Não há dúvida que Bronstein era um brilhante tático, dos maiores que já houve. Mas a sua falta de profundidade estratégica sempre lhe foi fatal em momentos decisivos.

Na URSS, não era crime ser anti-comunista, se o cidadão ficasse no terreno das idéias. O que constituía crime era conspirar contra o Estado – como, aliás, acontece em todos os tipos de Estado. Assim, a Federação de Xadrez da URSS forneceu a Bronstein os melhores analistas do país – seus “segundos”, cuja principal função era analisar as partidas adiadas, foram Boleslavsky, Furman e Konstantinopolsky. Do mesmo nível era um dos “segundos” de Botvinnik - seu amigo Salo Flohr. Melhores analistas que estes na URSS, só havia um: o próprio Botvinnik.

Muito já se escreveu sobre esse match de 24 partidas. Para os objetivos deste artigo, basta relatar que Bronstein abandonou as linhas de jogo que usava habitualmente e incorporou as linhas que, notoriamente, eram as favoritas de Botvinnik. Isso parece ter surpreendido o campeão. A duas partidas do final do match, Bronstein estava um ponto à frente de Botvinnik. Precisava apenas de uma vitória – ou de dois empates. Nesse clima começou a 23ª partida. Numa posição ganhadora no 41º lance, Botvinnik adiou a partida, selando seu 42º lance (ao pedir adiamento da continuação da partida, o jogador era obrigado a colocar num envelope lacrado o seu próximo lance). No entanto, Botvinnik selou um lance errado. E, sobretudo depois de conversar com Salo Flohr, sabia disso. Portanto, no dia seguinte, quando a partida reiniciou, ele sabia que o máximo que podia fazer era lutar tenazmente por um empate – o que deixaria Bronstein a meio ponto do título, com apenas uma partida para o encerramento do match.

Porém, aconteceu uma dessas coisas tão comuns quando os nervos falham nos momentos decisivos. Apenas um lance depois, quem errou foi Bronstein. E Botvinnik conseguiu encontrar, sem análise anterior, em pleno tabuleiro da partida, a jogada ganhadora. Na última partida, Bronstein conseguiria apenas empatar – mas, com isso, o match estava empatado, e Botvinnik manteve o título de campeão.

Foi o gatilho para uma enxurrada de panfletos anti-comunistas, sob a forma de artigos, “análises” e livros, que até hoje perdura. Veremos, na próxima edição, a veracidade dessa produção interminável.

Carlos Batista Lopes 

Fonte: http://www.cxv.com.br/html/cronicas/miseriaseglorias04.htm

TEXTO 198 - MISÉRIAS E GLÓRIAS DO XADREZ - 3.

PESQUISADO E POSTADO, PELO PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).

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QUINTA-FEIRA, 4 DE ABRIL DE 2013


Misérias e Glórias do Xadrez - 3

Misérias e Glórias do Xadrez - 3
Carlos Batista Lopes

Algum sujeito de espírito, parece que Miguel de Unamuno, disse que “o xadrez é um excelente exercício para melhorar a capacidade de jogar xadrez”. Nada pode ser acrescentado a esse raciocínio, exceto que também é válido para o salto com vara ou para a porrinha. A diferença é, apenas, a de que ninguém jamais pretendeu que as pessoas ficassem – ou fossem - mais inteligentes por saltar com vara ou apostar uns cobres nos palitinhos. Já o xadrez...

As pessoas que jogam xadrez não o fazem porque são mais inteligentes ou para ficar mais inteligentes. Jogam porque gostam de jogar xadrez. Como conseqüência, é possível ser um ás do xadrez e, ao mesmo tempo, ser um cretino em outros campos da vida. Muito antes de Kasparov, Alexander Alekhine foi a primeira demonstração dessa estranha convivência – estranha apenas em função das fantasias que cercam o jogo.

Nascido numa família muito rica, filho de um latifundiário czarista e da herdeira de um império industrial, Alekhine saiu da Rússia em 1921. Já era, então, famoso como jogador. Apesar de um incidente na Ucrânia, em que foi preso como espião contra-revolucionário (era a época da guerra civil), as autoridades soviéticas o liberaram para disputar o campeonato de Moscou (janeiro de 1920) e a Olimpíada de Xadrez de Todas as Rússias (outubro do mesmo ano) - que seria considerada como o I Campeonato da URSS, quando esta foi organizada, em 1922. Ele venceu os dois torneios. Porém, mais do que a oportunidade de jogar xadrez, os soviéticos ofereceram-lhe emprego como tradutor na Internacional Comunista e o nomearam secretário do Departamento de Educação Comunista.

No entanto, logo em seguida, ele preferiu juntar-se àquela malta de foragidos russos que se reunia em Paris. Naturalizou-se francês e até freqüentou a Sorbonne, supostamente para formar-se em Direito com uma tese sobre o sistema penitenciário chinês - as atuais instâncias de pós-graduação ainda não existiam, mas a embromação acadêmica já tinha, há muito, feito a sua estréia. A tese não foi aprovada, até porque ele jamais chegou a elaborá-la - o que não o impediu de intitular-se “Dr. Alekhine” para o resto da vida.

Mas, foi antes de sair da Rússia que ele começou a série de casamentos com senhoras algo alucinadas, em geral tão decrépitas quanto endinheiradas, a que se refere Hans Kmoch em “Grandes Mestres Que Eu Conheci”.

Amigo de Alekhine por longos anos, seu “segundo” (analista para partidas adiadas) durante o match de 1934 pelo campeonato mundial, e árbitro do match seguinte, Kmoch rompeu com o então campeão mundial durante a II Guerra, quando vivia com a esposa na Holanda invadida pelos nazistas. Foi então que um jornal alemão editado no país ocupado publicou um artigo de Alekhine intitulado “Xadrez ariano e xadrez judaico”. Referindo-se à sua derrota no match de 1935, dizia: “O árbitro Kmoch é casado com uma judia, logo qualquer um pode imaginar como ele era objetivo”.

Com efeito, a esposa de Kmoch, Trudy, era judia – e não é preciso dizer muito mais: “Sob o olho vigilante da Gestapo, tais declarações podiam significar a morte (....). Minha mulher e eu já estávamos em constante medo de que ela pudesse ser deportada. A acusação de Alekhine foi aterrorizante”, escreveu, depois, Kmoch. Acrescente-se que este último, austríaco, era “cidadão do Reich”, ou seja, após a anexação da Áustria, estava sujeito às leis raciais da Alemanha, em que o casamento com uma judia era crime punível, inclusive, com a morte.

A necessidade de relembrar o rol de canalhices perpetradas por Alekhine durante a guerra – em que também ele era oficialmente cidadão de um país ocupado, a França – reside em que hoje apareceram vários apologistas a relevar essa conduta indecente. A última versão é a de que “não foi provado” que Alekhine escreveu os artigos que apareceram com a sua assinatura nos jornais nazistas. Isso é exatamente o que não precisa de prova. Se ele apenas os assinou, pior. E, se esses artigos não existissem, sobrariam os seus alegres retratos em torneios nazistas, no momento em que uma série de grandes jogadores recusavam-se a participar dessas promoções nos países ocupados e, sobretudo, sua longa estadia como hóspede do “governador-geral” da Polônia, SS-Obergruppenführer (general das SS) Hans Frank, executado em Nuremberg por crimes contra a Humanidade.

Porém, sobre os apologistas de Alekhine, bastam alguns trechos do relato de Kmoch - escrito pouco antes de sua morte, em 1973 - que reproduzimos aqui porque “Grandes Mestres Que Eu Conheci” não foi publicado em livro (há uma tradução em inglês, “Grandmasters I Have Known*”, nos arquivos da revista eletrônica “ChessCafe.com”):

“Algum tempo atrás, escrevi um artigo sobre Alekhine. Já que ele era um contemporâneo meu que eu havia conhecido bem por muitos anos, senti que poderia evitar a costumeira apresentação dele como um grande gênio do xadrez e modelo de virtude. Ao invés disso, escrevi sobre sua personalidade e sobre minhas próprias experiências com ele, o que significava mostrá-lo, entre outras coisas, como um alcoólatra, um oportunista político e um anti-semita no estilo nazista.

“Quando meu artigo apareceu na Deutsche Schachzeitung, uma revista sobre xadrez de Berlim, enfrentei considerável menosprezo por parte de alguns ardorosos arianos. Um professor alemão insistiu que nunca tinha visto Alekhine bêbado e que, portanto, Alekhine não podia ter sido um alcoólatra. Outro professor alemão explicou tudo apontando a minha própria inferioridade. Um homem que em Viena costumava pertencer somente a clubes arianos de xadrez, condenou meu artigo como irreconciliável com o fato de que eu uma vez fora segundo de Alekhine.

“Muito mais tarde, alguns nobres especialistas em cobrir de cal a realidade, gente da mesma categoria dos professores alemães acima mencionados, explicaram que Alekhine foi forçado a escrever aqueles infames artigos. Mas isso é simplesmente uma variante da história do bêbado que borrou as calças e depois queria saber quem era o culpado”.

CAPABLANCA


Porém, em 1927, quando se tornou campeão, a consciência geral ainda era a de que os nazistas não passavam de alguns palhaços. Somente quando lhe pareceu que os nazistas iriam ganhar a guerra, é que Alekhine começou publicamente a bajulá-los. Antes, tomou bastante cuidado, inclusive para que os soviéticos não o vissem como um inimigo, apesar de sua condição de emigrado da Rússia.
A explicação é que nenhum outro país contava com tanta simpatia nos meios enxadrísticos quanto a URSS. Esta, aliás, havia sido governada por um enxadrista, Lenin, e era agora dirigida por outro, Stalin, ambos conhecidos como fortes jogadores. Quando o grande Lasker foi obrigado, após a tomada do poder por Hitler, a sair da Alemanha, preferiu Moscou como local de moradia, em vez de Londres, onde havia, a princípio, se asilado. Posteriormente, foi encontrar-se com seu amigo Albert Einstein, nos EUA.

A FUGA

O primeiro problema de Alekhine, depois de ganhar o título mundial, foi o mesmo de antes: José Raul Capablanca. Por acordo mútuo, havia sido acertado que haveria um match-revanche. Alekhine rompeu o compromisso - e é impressionante a energia que investiu para fugir a um novo confronto.
Não era apenas uma fuga do match-revanche. Alekhine fugiu de qualquer enfrentamento, mesmo em torneios, com Capablanca. Numa atitude que só seria vista muitas décadas depois, exigiu, em certas ocasiões, que a inscrição de Capablanca não fosse aceita, como condição para sua participação em torneios - tal como Kasparov faria com o GM Valery Salov, é verdade que, nesse último caso, por razões políticas, e de forma mais covarde, pois Salov não era Capablanca, e, em meio à queda da URSS, tinha a mídia contra ele. 

Karpov x Kasparov 

Salov



O outro método de Alekhine, ao saber que Capablanca seria um dos participantes de um torneio em que já estava inscrito, era, na última hora, fazer exigências financeiras extorsivas, a serem cumpridas em prazo exíguo (v. p. ex., sua carta de 19/05/1932 a um dos organizadores do Torneio de Pasadena, Califórnia).

Quando do falecimento de Capablanca, em 1942, Alekhine diria que “morreu o maior jogador de todos os tempos, um gênio como nunca se verá novamente”. Próximo da própria morte solitária em Portugal, deixou escapar: “Não entendo, nem agora depois de tantos anos, como consegui ganhar de Capablanca no match de 1927”.

Em suma, Alekhine queria manter o título contra alguém que tinha certeza de que era melhor do que ele. Há quem não concorde com esta avaliação sobre Capablanca. Mas esta era a avaliação de Alekhine. Conta Reuben Fine que, no início dos anos 30, Capablanca mostrou a ele a montanha de correspondência mantida com Alekhine e/ou seus representantes, com o objetivo de realizar um novo match. Tudo perfeitamente inútil. Alekhine estava fugindo de jogar uma simples partida, quanto mais um match. 

No entanto, em 1936, Alekhine não conseguiu evitar o confronto com Capablanca. Era um dos torneios mais importantes do mundo, o de Nottingham, Inglaterra, e Alekhine estava com o prestígio abalado, por sua derrota contra Euwe no ano anterior – somente no ano seguinte ele recuperaria o título mundial, precisamente, num match-revanche. Assim, aceitou participar de Nottingham, mesmo sabendo que Capablanca estaria lá. 

A partida foi especialmente tensa. Os jogadores evitaram sentar-se um em frente ao outro – faziam sua jogada e depois iam andar pelo salão, esperando a resposta do oponente. Alekhine ficou em posição superior. E foi então que o talento estratégico de Capablanca se impôs sobre o jogo eminentemente tático de Alekhine. Entre os que analisaram a partida, somente o velho Lasker – aos 68 anos – percebeu a sutileza. Eis o relato de Capablanca:

“Durante o transcurso da partida, meu contrário adquiriu uma magnífica posição, e, em um determinado momento, viu que mediante uma pequena manobra podia ganhar a qualidade [“ganhar a qualidade”=trocar um bispo ou cavalo, peças menores, por uma torre, peça maior]. Atirou-se e ganhou a qualidade, mas depois perdeu a partida. Muitos dos mestres mais fortes ali presentes puseram-se a estudá-la. Todos partiam do momento em que começava a manobra para ganhar a qualidade. Todos afirmavam que a manobra era correta, e buscavam o erro em algo posterior. Assim estiveram por muito tempo, e nisso chegou Lasker. Colocaram-no a par do resultado e lhe mostraram a posição; mas logo que começaram a demonstrar-lhe a manobra para ganhar a qualidade, ele interrompeu e disse: 'Não, isso nunca'. O velho mestre havia percebido o que os outros não haviam visto: que ganhar a qualidade era um erro, e que meu contrário não somente perdia a vantagem que lhe dava sua magnífica posição, mas que, com qualidade e tudo, tinha uma posição perdida. Havia percebido que a combinação não havia sido feita pelo meu contrário, mas por mim, ao permitir-lhe ganhar a qualidade. Assim, disse: 'Você, sem dúvida, respirou aliviado quando viu que seu adversário mordeu o anzol'. (....) A verdade é que Lasker foi o único alí presente que se deu conta do verdadeiro valor daquela posição, assim como das possibilidades que ela continha” (transcrito de “Ultimas Lecciones”, pela revista Ajedrez en Cuba, Vol. II-16, nº 26, set./1998).

Há algo inteiramente fora do comum neste texto: Capablanca, que sempre se mostrou amistoso com os oponentes, inclusive nas análises dos jogos que ganhou deles, nesse caso não cita o seu nome. Nem mesmo o chama de “oponente”, em geral o termo que os enxadristas preferem para designar seus adversários. Até mesmo esta última palavra é usada, no texto, somente por Lasker. Capablanca prefere chamá-lo de “meu contrário”. O que Alekhine, sob vários aspectos, e essencialmente, era.

A.V.R.O.

AVRO 1938 

 Assim, Alekhine preferiu indicar como seus desafiantes jogadores mais fáceis de bater do que Capablanca. O seu favorito foi Bogolyubov, também um “russo branco”, que ele dominava sem dificuldades.


Alekhine bateu Bogolyubov em 1929 e 1934. Depois disso, os litros de álcool começaram a deixar suas sequelas. Em 1935, Capablanca, que interrompera brevemente sua trajetória no xadrez entre 1931 e 1934, voltara a ser o principal jogador do mundo. Mas Alekhine continuava a sua fuga. Escolheu como desafiante o matemático holandês Max Euwe, um excelente teórico, depois presidente da FIDE.


Encharcado em bebida, apesar de ter escolhido o desafiante – não resistira à atrativa bolsa oferecida – Alekhine perdeu o título mundial. Euwe venceu, com 9 partidas ganhas, 8 perdidas e 13 empates. Porém, o novo campeão, um homem de caráter, que se recusaria, durante a ocupação nazista da Holanda, a participar dos torneios organizados pelos invasores, manteve sua palavra em relação ao match-revanche acordado antes. Assim, Alekhine recuperou o título em 1937, depois do supremo sacrifício de deixar, por algum tempo, as bebidas alcoólicas - para ele, o xadrez era um vício mais importante.

Mas havia se chegado a um limite. O sistema pelo qual o campeão escolhia seu próprio desafiante entrara em falência. A rigor, apodrecera em público, depois da escandalosa conduta de Alekhine. Era impossível continuar daquele jeito, com um campeão à caminho da demência, mantendo o título exclusivamente devido a uma regra injusta. Em 1937, a entidade mundial, a FIDE, tentou apontar como desafiante a Salo Flohr, jogador tcheco-eslovaco (após a invasão de Hitler ao seu país natal, naturalizado soviético) que fizera sensação nos anos precedentes. Alekhine, simplesmente, ignorou a indicação. Veremos como, 60 anos depois, Kasparov imitaria Alekhine. 

Foi esse estado geral de incômodo, colcocando em questão a legitimidade do título mundial, que fez com que Alekhine aceitasse a realização de um torneio para apontar o desafiante - além, evidentemente, do estipêndio que lhe ofereceram os patrocinadores do torneio, a cadeia radiofônica holandesa A.V.R.O. (Algemene Vereniging Radio Omroep). Embora, exceto o escândalo que poderia advir de sua recusa, nada havia que obrigasse Alekhine a respeitar o resultado do torneio.




O Torneio A.V.R.O. reuniu, em, 1938, os oito maiores jogadores do mundo: Capablanca, Alekhine, Max Euwe, o campeão soviético Mikhail Botvinnik, Salo Flohr, o estoniano Paul Keres (a Estônia ainda não fazia parte da URSS), o norte-americano Reuben Fine e o polaco-americano Reshevsky.
Em meio ao torneio, Capablanca sofreu um acidente vascular cerebral. Mesmo assim, quis cumprir a tabela até o final. Empatou uma das partidas com Alekhine e perdeu a outra. Chegou em sétimo, à frente de Salo Flohr, afetado pelos acontecimentos em seu país. Alekhine conseguiu apenas o sexto lugar, um ponto acima de Capablanca – 7 em 14 possíveis.

O A.V.R.O. foi vencido pelo norte-americano Reuben Fine e pelo estoniano Paul Keres, ambos com 8,5 pontos, logo acima do maior jogador soviético, Mikhail Botvinnik. Mas, antes que os vencedores acertassem regras para o desempate e a disputa do título com Alekhine, começou a II Guerra Mundial. Depois dela, o xadrez soviético emergeria como hegemônico pelo próximo quarto de século.

Carlos Batista Lopes
Fonte: http://www.cxv.com.br/html/cronicas/miseriaseglorias03.htm

TEXTO 197 - MISÉRIAS E GLÓRIAS DO XADREZ - 2.

PESQUISADO E POSTADO, PELO PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).

REFERÊNCIA:
http://xadrezparaler.blogspot.com.br/search?updated-max=2013-04-05T05:13:00-07:00&max-results=7&reverse-paginate=true


SEGUNDA-FEIRA, 1 DE ABRIL DE 2013

Misérias e Glórias do Xadrez - 2

 

Misérias e Glórias do Xadrez - 2
Carlos Batista Lopes


Alguns leitores, uns adeptos do xadrez e outros não, dirigiram-nos algumas perguntas a respeito da primeira parte deste artigo. A nossa opinião sobre a maior parte dessas questões estará no correr do próprio artigo. Mas existem duas dessas perguntas que merecem uma resposta imediata. Portanto, antes de voltar a Capablanca - e de como foi organizada a luta por sua sucessão ao título mundial – faremos um breve intermezzo.

A primeira é uma pergunta de leitores que não são enxadristas: o que é um “gambito”, palavra que utilizamos ao nos referir ao “gambito Marshall”? Gambito, por definição, é uma troca de material por tempo. Em suma, é o recurso, existente em várias aberturas no xadrez, em que um jogador sacrifica um peão (em certos casos, mais do que um) para tornar seu jogo mais veloz e, via de regra, realizar um ataque. “Aceitar um gambito” é aceitar o sacrifício proposto pelo oponente, isto é, tomar o peão que ele está oferecendo. Naturalmente, aceitar um gambito é sempre perigoso, exceto se já se conhece – ou se descobre no desenrolar da partida – a sua refutação, isto é, a seqüência de jogadas que fazem fracassar a tentativa do oponente. Em um de seus estudos da década de 60 (“A bust to the King's Gambit”, 1961), Bobby Fischer formulou o princípio de que “a única forma de refutar um gambito é aceitá-lo”, frase repetida por Kasparov, sem citar o autor original, num dos volumes de “Meus Grandes Predecessores”. O que essa frase quer dizer é simplesmente que é impossível ficar em vantagem diante de um gambito, se não aceitamos correr o risco de aceitá-lo. O melhor, embora o mais arriscado, geralmente, é tomar o peão oferecido pelo oponente e buscar a refutação da sua linha de jogo – o que, se a encontramos, o deixará em desvantagem, tanto material (um peão a menos), quanto, quase sempre, no que se refere à posição no tabuleiro. Frisamos que isso é apenas um princípio geral. O próprio Fischer, em certas situações, recusou gambitos (v., p. ex., a partida Tomargo-Fischer, NY, 1956).

Para a nossa história, existe aqui uma curiosidade: Capablanca tinha um certo desprezo por “jogadores de gambito”. Seu terreno sempre foi a estratégia do jogo - e a técnica precisa com que finalizava suas partidas. Os gambitos pertencem a outro campo: são recursos táticos, e, frequentemente - muito mais ainda na época de Capablanca - o “jogador de gambitos” tende, oportunisticamente, a sacrificar a estratégia em prol de um ganho tático momentâneo.

PREDECESSORES

Kasparov

A segunda pergunta vem de leitores já enfronhados no xadrez: qual a nossa opinião sobre “Meus Grandes Predecessores”, de Kasparov? Trata-se de um livro em cinco volumes sobre todos os campeões mundiais anteriores a ele – e alguns outros jogadores importantes - que Kasparov publicou em poucos anos. Essa é, aliás, a primeira coisa que chama a atenção: o primeiro volume, com 400 páginas, foi lançado em agosto de 2003; o segundo, com quase 500 páginas, em janeiro de 2004; no mesmo ano, apenas 10 meses depois, em novembro, foi lançado o terceiro, com mais de 300 páginas; dois meses apenas se passaram até o lançamento do quarto, com 500 páginas dedicadas a Bobby Fischer, em janeiro de 2005 – por uma tremenda coincidência, exatamente quando Fischer havia reaparecido na mídia, agora como vilão, e, a pedido do governo Bush, estava preso no Japão; para encerrar, em março de 2006 ele lançaria o quinto, abordando a contribuição de seu arqui-rival, Anatoli Karpov, também com 500 páginas. Como ele conseguiu em tão pouco tempo escrever tanto sobre um período tão largo – nada menos do que 400 anos? Certamente, ele poderia dizer que há muito tempo se dedicava à obra. Porém, não há notícia disso.

Qualquer um que publicasse tanto em tão pouco tempo sobre tanta coisa – incluindo inúmeras análises de partidas jogadas desde o século XVII – seria considerado, no mínimo, suspeito de vigarice, ou, mesmo, mais do que suspeito, um vigarista – aliás, foi o que disse Fischer, mas, naturalmente, hoje a mídia não se preocupa mais com as opiniões de Fischer, exceto para desqualificá-las. O fato é que Kasparov usou um “ghost-writer” - e, provavelmente, não apenas um – para escrever esses livros. Ou seja, em boa parte não foram escritos por ele, mas por redatores que alugou.

Não nos deteremos na qualidade das análises constantes desses livros, nos erros grosseiros (alguns corrigidos em edições posteriores) e nos plágios evidentes. Alguns autores, tanto na Rússia quanto fora dela, já disseram o suficiente sobre isso e, de qualquer forma, este não é um artigo somente para enxadristas.

Porém, é forçoso apontar a sociologia barata que percorre esses livros do começo ao fim. Não se trata apenas de que essa pseudo-sociologia é reacionária. É interessante que o anti-comunista Kasparov, na hora de produzir o que apresentou como sua magna obra, tenha recorrido a uma caricatura do marxismo com o sinal político trocado. Pois a sua tese, que nada tem de original, é que cada campeão mundial – ou, melhor, a maneira como cada campeão abordou o xadrez - foi expressão do tempo em que cada um viveu. A partir disso, está liberada a catadupa de bobagens, pois Kasparov, ou os que escreveram os livros por ele, nada entendem nem da época atual, nem das épocas passadas, e nem querem entender. Preferem o rasteiro panfleto anti-comunista, daqueles em que a CIA é muito mais competente.

Mikhail Botvinnik

Vejamos o seguinte trecho, sobre Mikhail Botvinnik, o maior dos jogadores soviéticos (e professor de Kasparov durante toda a sua formação como enxadrista): “O frio, impiedoso estilo do Patriarca da Escola Soviética de Xadrez, baseado numa profunda abertura e preparação psicológica – não é isso um símbolo do poder do regime de Stalin? (....) Ele foi campeão nos anos iniciais da Guerra Fria, quando o esporte emergiu na arena política mundial, e foi transformado num instrumento na batalha ideológica entre o Leste e o Ocidente”. Dito por Kasparov, que nessa batalha preferiu passar para o outro lado, não deixa de ser um elogio a Botvinnik, homem ao qual ele tratou com uma indignidade rara em várias oportunidades. Porém, a “frieza” e “impiedade” do estilo de Botvinnik são por conta dele, assim como sua fantasia a respeito da época de Stalin.

Mas, vejamos este outro trecho, sobre Anatoli Karpov, que além de campeão mundial durante mais de 10 anos, é até hoje o jogador de xadrez que venceu maior número de torneios na história: “um favorito de Brezhnev e um símbolo vivo da ‘estagnação’ – a última década do regime, quando a URSS invadiu o Afeganistão, e os dirigentes do partido, escondendo-se atrás do biombo de uma ideologia decadente, faziam tudo para conseguir o enriquecimento pessoal. Corrupção, estagnação, cinismo e conformismo – essas eram as características típicas da realidade soviética no crepúsculo da era comunista. (....) Mas o Ocidente aceitou a idéia da coexistência pacífica de dois sistemas (....). Os dois matches pelo campeonato mundial entre Karpov e Korchnoi (1978 e 1981) são uma excelente ilustração desse período. Korchnoi, mesmo depois de tornar-se um ocidental e alistar-se no apoio ao mundo livre, foi incapaz de resistir ao cruel poder da máquina soviética” [os trechos acima foram traduzidos da edição norte-americana de “Meus Grandes Predecessores”].

Quase não são necessários comentários após isso. Korchnoi era (e continua sendo) um renegado repugnante. Mas perdeu para Karpov porque este era (e continua sendo) melhor jogador do que ele. Além da falsificação sobre o período Brezhnev, e da retórica com marca registrada (“mundo livre”, etc.) é interessante a reclamação de que “o Ocidente aceitou a idéia da coexistência pacífica de dois sistemas”. Quando terá sido isso?

É também sintomática a difamação dos dirigentes da época. Todos eram assim? Pelo menos um, parece que era: Kasparov, que era dirigente do Konsomol (Juventude Comunista), aliás, membro do comitê central da organização, o que não era pouco na URSS. Mas essa passagem do seu currículo ele omite – prefere posar de “perseguido” pelos comunistas. 

Por último, uma observação sobre o sentido da coleção de livros de Kasparov: não há dúvida que o objetivo era puro marketing. Daí o inédito aparato de mídia, cuja especialidade até então jamais havia sido a de promover livros sobre xadrez. Mas aí está a questão: “Meus Grandes Predecessores”, não importa o que digam os puxa-sacos de Kasparov, é secundariamente um livro sobre xadrez. Na verdade, é um livro sobre Kasparov. Ou, mais exatamente, um livro para fabricar uma imagem de Kasparov. Não por acaso, toda a história do xadrez tem nele um único objetivo: produzir, ao final e ao cabo, o seu ápice. Afinal, que outro sentido podem ter as vidas enxadrísticas de Greco, Philidor, Anderssen, Morphy, Steinitz, Lasker, Capablanca, Botvinnik, Fischer, Karpov e outros, senão produzir, no final, um Kasparov? Um de nossos leitores pergunta se não é possível aprender alguma coisa sobre xadrez lendo “Meus Grandes Predecessores”. Sim, é possível, leitor. Mas nada que fontes anteriores e melhores não possam fornecer. Pois Steinitz e todos que os vieram depois, inclusive Fischer, eram excelentes escritores. O que não se pode dizer de Kasparov – mesmo quando contrata um redator para os seus livros.

NOVA IORQUE, 1927

Capablanca


Mas voltemos a Capablanca, que deixamos no ano de 1921, quando venceu Lasker e tornou-se o novo campeão mundial.

Nos anos seguintes, sua primazia continuou a afirmar-se. Capablanca venceu o Torneio de Londres, em 1922, fazendo 13 pontos em 15 possíveis (em xadrez, normalmente, uma vitória numa partida de torneio ou de match soma 1 ponto, enquanto um empate soma 0,5). O segundo colocado em Londres, Alexander Alekhine, conseguira 11,5 pontos. Nesse mesmo ano o campeão bateu o recorde de partidas simultâneas – jogou simultaneamente contra 103 oponentes, ganhando 102 partidas e empatando uma, sem nenhuma derrota.

Em 1924, em Nova Iorque, no entanto, Capablanca foi o segundo colocado. Porém, o primeiro foi Lasker, que, com 54 anos, voltava ao primeiro plano do xadrez internacional. Abaixo de Capablanca, esteve outra vez Alekhine, prenunciando a batalha que haveria três anos depois.

Foi no Torneio de Nova Iorque de 1924 que a série de vitórias consecutivas de Capablanca, que vinha desde 1916, foi interrompida – ele foi derrotado em sua partida com o mestre tchecoslovaco Ricardo Reti, um dos expoentes da escola “hipermoderna” ou “neo-romântica”, que preconizava um abandono dos princípios clássicos, em especial da ocupação do centro do tabuleiro por peões, propondo um controle central através da ação “à distância” das peças (para o leitor que não é aficionado do xadrez: habitualmente os enxadristas não se referem aos peões, que são a infantaria do xadrez, como “peças”; este termo é reservado, além do rei, para os bispos e cavalos, que são as “peças menores”, e para as torres e a dama, que são as “peças maiores”, isto é, a artilharia pesada do xadrez).

Depois de uma vasta discussão sobre os critérios para definir o desafiante do campeão, Capablanca propôs duas condições: uma bolsa de US$ 10 mil e a realização de um torneio para apontar o desafiante.

O torneio foi realizado em 1927, em Nova Iorque, e reuniu os seis maiores jogadores do mundo – com exceção, outra vez, de Lasker: depois de seus 27 anos como campeão, ele, compreensivelmente, desinteressara-se de disputar outra vez o título.

Foi o primeiro torneio de candidatos a desafiante do campeão da história do xadrez. Ou, como precisou Capablanca no ano seguinte, em uma carta a Alexander Rueb - então presidente da FIDE, a entidade internacional de xadrez - foi a primeira tentativa de instituir um torneio de candidatos e acabar com a regra pela qual o próprio campeão escolhia o desafiante.

Como todas as idéias incipientes, esta também possuía suas originalidades. A primeira é que o próprio campeão participaria do torneio. A segunda é que os jogadores se enfrentariam quatro vezes, duas jogando com peças brancas e duas jogando com peças negras (para o leitor que jamais tenha jogado xadrez: as brancas sempre iniciam a partida, portanto têm a vantagem teórica, confirmada pelos resultados práticos, de um lance à frente).

Existem poucas palavras adequadas para descrever o que ocorreu nesse torneio. Talvez seja necessário recorrer ao truculento verbo “trucidar”. Pois o campeão simplesmente trucidou os oponentes. Capablanca fez 14 pontos em 20 possíveis, enquanto o segundo colocado, Alekhine, fez 11,5. No confronto direto, Capablanca destroçou Alekhine numa das partidas mais famosas da história. No entanto, nas outras três partidas eles haviam empatado. Ninguém prestou muita atenção nesse último fato, porque, no torneio, pelo menos duas vezes, uma das quais contra o próprio Alekhine, Capablanca aceitou o empate em posição de superioridade.

QUEDA

Match, 1927



O Torneio de Nova Iorque foi em fevereiro e março de 1927. O match com o desafiante – Alekhine, o segundo colocado do torneio – foi marcado para setembro, apenas seis meses depois, em Buenos Aires.

Havia muito pouca gente com dúvidas sobre o resultado. Entre os mestres de xadrez, apenas dois previram a vitória de Alekhine. Exceto eles, Capablanca era uma unanimidade. 
E, no entanto, ao final da primeira partida, Capablanca havia sido derrotado por um oponente do qual jamais perdera, o que teve um impacto psicológico sobre ele que se estendeu por todo o restante do match.

Ele previra uma vitória fácil. Tanto assim que concordara com condições de disputa que somente muito tarde percebeu que favoreciam o oponente: ganharia quem vencesse seis partidas, o que transformou o match numa quase interminável maratona que durou 34 partidas. Numa antecipação de sua estratégia para enfrentar Capablanca, Alekhine declarou ao partir para Buenos Aires: “Não sei como vencer Capablanca seis vezes, mas também não sei como alguém pode vencer Alekhine seis vezes”. Ele tentaria resolver o “problema Capablanca” de uma forma inesperada: a solução não era descobrir uma nova linha de jogo, mas submeter o cubano a uma interminável série de partidas, quase sempre com a mesma linha.

Capablanca sempre encontrara na vida distrações suficientes para não transformar o xadrez numa obsessão. Já Alekhine, um ex-nobre russo que emigrou após a revolução, encontrara no xadrez sua única afirmação. Era um neurótico – ou coisa pior – daqueles que se descrevem nas páginas dos livros de psiquiatria. Ganhar em xadrez para ele era tudo – ou quase, pois não era alguém que subestimasse o dinheiro.

Em suma, mal comparando com o atletismo, Capablanca foi a Buenos Aires para vencer os 100 metros rasos. Mas o que encontrou lá foi uma corrida de fundo. E este era o terreno de Alekhine.
Daí, as diferenças na preparação de cada um dos jogadores para o match. Enquanto Alekhine analisava cada uma das partidas do campeão, em especial àquelas que o cubano havia vencido contra ele, Capablanca agiu de seu modo habitual: resolveu fazer um tour pelo Brasil, jogar simultâneas, receber a hospitalidade de nosso povo - e, dizem algumas más-línguas, também teria se dedicado a um importante estudo etnológico comparativo, com o objetivo de descobrir a diferença entre as mulatas brasileiras e as cubanas...

Mesmo assim, depois da derrota na primeira partida e um empate na segunda, Capablanca igualou o match ao vencer a terceira partida. Seguiram-se três empates. Na sétima, uma vitória estupenda, Capablanca ficou em vantagem no placar. Mas, depois de mais três empates irritantes, perdeu a 11ª e a 12ª. Seguiram-se mais oito empates e Alekhine venceu a 21ª. Mais oito empates e Capablanca derrotou Alekhine na 29ª. Mas era tarde. O esgotamento de Capablanca era tão grande que chegou a aceitar um empate numa posição tão obviamente ganhadora que a imprensa radiofônica noticiou sua vitória antes que a partida terminasse. Simplesmente, ele não havia reconhecido a posição como ganhadora. E, então, Alekhine arrematou, vencendo a 32ª e a 34ª partida.

Estava, com a vitória de Alekhine, aberta a primeira sessão de luta político-ideológica da história do xadrez. Se o leitor for paciente, é o que veremos na próxima edição.

Carlos Batista Lopes
Fonte: http://www.cxv.com.br/html/cronicas/miseriaseglorias02.htm


TEXTO 196 - MISÉRIAS E GLÓRIAS DO XADREZ - 1.

PESQUISADO E POSTADO, PELO PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).

REFERÊNCIA:
http://xadrezparaler.blogspot.com.br/search?updated-max=2013-04-05T05:13:00-07:00&max-results=7&reverse-paginate=true

QUARTA-FEIRA, 13 DE MARÇO DE 2013

Misérias e Glórias do Xadrez - 1

Misérias e Glórias do Xadrez - 1
Carlos Batista Lopes


O que há de mais reacionário dentro e fora da Rússia parece decidido a usar Garry Kasparov como testa-de-ferro - ou, pelo menos, a mantê-lo como opção - nas próximas eleições presidenciais daquele país. O xadrez é um esporte nacional russo, quase como o futebol entre nós. Logo, um ex-campeão mundial desse esporte seria, realmente, um candidato a considerar contra o presidente Putin - ou o candidato que este vier a apoiar. Mais ainda porque Kasparov não é aquilo que antigamente se chamava um “inocente útil”. Pelo contrário. De inocente, Kasparov nada tem. Mas não há dúvida de quem tem sido de uma utilidade ímpar para “oligarcas” russos e monopólios imperialistas.

Há poucos dias, ele, que há alguns anos obteve também a nacionalidade norte-americana, foi escolhido candidato a presidente pela coalizão “A Outra Rússia” - que reúne uma cafua de partidos direitistas, inclusive o “Nacional-bolchevique”, um partido fascista que tem tanto a ver com os bolcheviques quanto o partido Nacional-socialista de Hitler tinha a ver com o socialismo. Seguiu-se o apoio de uma mal chamada “frente cívica”, e fala-se, inclusive, que poderá ser o candidato único dos que se opõem ao atual governo russo.

Não é de agora que Kasparov tem dedicado ao presidente Putin alguns epítetos do tipo “ditador” e “tirano”, mas não por deficiências e problemas que o governo de Putin tenha – e certamente tem. O motivo do ódio de Kasparov é a tentativa do presidente russo de combater ou, pelo menos, limitar, o poder político e econômico de alguns nababos que assaltaram o imenso patrimônio construído durante o socialismo na URSS. O mais conhecido desses mafiosos é Bóris Berezovsky, hoje foragido na Inglaterra – e com prisão decretada em vários países, entre os quais, o Brasil. É por causa da repressão a esse tipo de delinqüente que Kasparov diz que “não há democracia na Rússia”. A propósito, Kasparov tem uma crítica a Berezovsky: a de que este não faz tudo o que pode contra o presidente Putin. 

Trata-se de um democrata muito peculiar. Na última vez em que esteve no Brasil, Kasparov declarou à revista “Época” que “a maior figura da história russa foi o almirante Kolchak”. Este hoje esquecido canalha era um genocida que aterrorizou a parte asiática da Rússia durante a Guerra Civil (1918-1922), na tentativa de coroar-se a si mesmo czar de todas as Rússias. A sofreguidão sanguinária de Kolchak e de seus oficiais czaristas era tal que provocou revolta até mesmo nas tropas estrangeiras que interviram na Rússia a seu favor, na tentativa de esmagar a recém realizada revolução. Por exemplo, em suas memórias daquele período, o general norte-americano William S. Graves, comandante da força de intervenção que o governo dos EUA enviou à Sibéria para apoiar as hordas de Kolchak, relata que elas “devastavam o país como animais selvagens, matando e roubando. Quando se objetava contra esses assassinatos brutais, respondiam que os assassinados era bolcheviques, e essa explicação parecia satisfazer todo mundo”. Graves também relata os levantes do povo contra esses criminosos e a sua própria reação quando foi solicitado a reprimir a população, que queria executar um dos carniceiros de Kolchak, um certo Ivanov-Rinov: “no que me diz respeito”, disse o general a Charles Eliot, enviado inglês junto a Kolchak, “o povo pode trazer Ivanov-Rinov para a frente do meu quartel-general e pendurá-lo naquele poste” (cf. Graves, W. S., “America's Siberian Adventure: 1918-1920”).
Esses são os heróis de Kasparov – e uma amostra da democracia da qual é adepto. A propósito, há apenas duas semanas, ele declarou que é mais difícil vencer Putin do que foi vencer em xadrez porque agora “meu oponente pode mudar as regras quando quiser”.

O interessante nessa declaração é que toda a carreira de Kasparov em xadrez foi feita sob a égide da mudança de regras. Certamente, ele não conseguiu, ou não foi necessário, mudar as regras do jogo. Em vez disso, foram as regras das disputas que foram mudadas, para que ele ascendesse e se mantivesse no topo do xadrez mundial.

Já veremos como foi a ascensão de Kasparov. Por agora é suficiente recordar que a primeira vez em que a maioria dos enxadristas fora da URSS ouviu falar de Kasparov foi quando Arrabal, o mesmo do “teatro do absurdo”, que mantinha uma coluna sobre xadrez no “L'Express”, abriu uma campanha para defender um jovem e talentoso jogador judeu que, devido ao anti-semitismo dos comunistas, tinha sido obrigado a mudar o próprio nome para continuar a participar de torneios.

Hoje é público que Kasparov apagou o sobrenome judeu do pai – Weinstein - por exigência da mãe, Clara, após a separação. No entanto, ele chegou a participar de torneios usando o sobrenome paterno, sem que houvesse problema algum. Não fosse a URSS um país onde alguns dos principais jogadores de xadrez tinham sobrenomes como Bronstein, Moseievich, Rabinovich, Averbakh - e a lista de jogadores de origem judaica que jamais foram importunados por causa de seu nome é quase infinita.

No entanto, o espantoso é que ninguém se lembrasse disso na época em que Arrabal – o mesmo que queixou-se de que, sob o fascismo, na Espanha somente se dava atenção aos escritores que eram contra Franco – começou a sua campanha, e que mesmo enxadristas politicamente à esquerda tenham engolido essa idotice e ficado intimidados por ela.

Porém, a luta política, ideológica, propagandística, no xadrez não havia começado com Kasparov e a campanha de Arrabal. Por isso é necessário que recuemos um pouco no tempo para abordá-la.

O INÍCIO


Alexander Alekhine


Em 1946, o então campeão mundial de xadrez, Alexander Alekhine, um russo “branco” (isto é, contra-revolucionário) naturalizado francês, consumia-se, com a ajuda de litros de bebida, num quarto de hotel no Estoril, em Portugal. Sob a proteção da ditadura salazarista, ele conseguira fugir à Justiça francesa, que desejava julgá-lo por sua colaboração com os nazistas durante a II Guerra Mundial.

Naquela época era o próprio campeão quem decidia qual o desafiante que deveria enfrentar. A regra havia sido estabelecida em 1866 pelo primeiro campeão mundial, o austríaco Wilhelm Steinitz, que mantivera o título por 28 anos. Porém, Steinitz - o primeiro teórico a estabelecer leis científicas para o xadrez - tinha tal predominância em sua época que essa regra não tornava ilegítimo o título: era consenso que o campeão era o maior jogador do mundo, e que venceria qualquer oponente, fato confirmado pelos matches que disputou pelo título – contra Zukertort (EUA, 1886), Tchigorin (Havana, 1889), Gunsberg (NY, 1890) e, outra vez, Tchigorin (Havana, 1892).

Em 1894, finalmente, Steinitz, com quase 60 anos, perdeu o título num match contra um jovem de 28 anos, Emanuel Lasker. Nas duas décadas seguintes, talvez nenhum outro jogador em toda a história do xadrez tenha evidenciado uma superioridade tal sobre seus contemporâneos, quanto Lasker. O que fez com que a regra que dava ao campeão o direito de escolher o desafiante permanecesse intocada. Lasker, um matemático alemão (deve-se a ele a versão original do “teorema de Lasker-Noether”, da álgebra comutativa), introdutor da abordagem psicológica em xadrez, manteve-se campeão durante 27 anos, derrotando em matches alguns dos maiores jogadores da época: o próprio Steinitz, num match-revanche (Moscou, 1896), o norte-americano Frank Marshall (EUA, 1907), o alemão Tarrasch (Alemanha, 1908), o polonês Janowski (Paris, 1909), o austríaco Schlechter (Berlim, 1910) e novamente Janowski (Berlim, 1910).

Porém, já naquela época, alguns críticos observaram que o campeão não havia enfrentado Akiba Rubinstein, um jogador polonês que colecionara uma série espetacular de vitórias a partir de 1907. Rubinstein, judeu como Lasker, mas originário de um gueto miserável na Polônia, não havia reunido dinheiro ou patrocínio suficiente para a bolsa exigida pelo campeão.

Não é inteiramente verdade que Lasker houvesse evitado Rubinstein. O match entre eles foi marcado para outubro de 1914, mas a I Guerra Mundial impediu sua realização. Porém, também é verdade que Rubinstein, depois de 1912, havia declinado como jogador, iniciando uma processo que o levaria à esquizofrenia e ao internamento em um hospital psiquiátrico no ano de 1932 - de onde somente saiu quando os nazistas o enviaram a Auschwitz, mas ao qual voltou após a II Guerra, para morrer, ainda internado, em 1961.
O fato é que, depois da I Guerra, outra estrela começou a brilhar intensamente.

CAPABLANCA


José Raul Capablanca, o jogador cubano que em 1921 derrotou Lasker, foi o maior jogador da história do xadrez. Até mesmo Bobby Fischer, que jamais pecou pela modéstia, declarou que “Capablanca foi provavelmente o melhor jogador que já houve”. De todas as partidas que jogou oficialmente (601), Capablanca perdeu apenas 34, ou seja, 5,6%. Durante oito anos (1916-1924), ele esteve sem derrota, sequer em uma partida. E, nos 10 anos que vão de 1914 até 1924, Capablanca perdeu apenas três partidas (contra Tarrasch, em 1914, contra Chajes, em 1915, e contra Reti, em 1924).

Estranhamente - como observou o grande jogador norte-americano Reuben Fine, que conheceu Capablanca na década de 30 - o xadrez nunca foi o principal interesse do cubano. Fiel às suas origens, antes do xadrez, diz Fine, vinham outros três interesses: “vinho, mulheres e canções”, não necessariamente nesta ordem. Ele foi incensado em Hollywood como exemplo do “latin lover”, e eleito um dos 10 homens mais elegantes do mundo pela mídia dos EUA, porém, não foram apenas os norte-americanos que o celebraram. Em 1925, quando participou do Torneio Internacional de Moscou, cidade de que sempre gostou muito, Capablanca foi o astro de um curta-metragem de Pudovkin, “A Febre do Xadrez”, filme em que o diretor de “A Mãe” revela-se também um às da comédia. 

Capablanca nunca jogou xadrez profissionalmente, até que sua demissão do serviço diplomático de Cuba, por uma das ditaduras que Washington instalou na Ilha, o obrigou. Ao falecer, em 1942, alguns amigos que levaram seus pêsames à viúva tiveram a surpresa de constatar que o grande jogador nem mesmo possuía em casa um tabuleiro de xadrez.

No entanto, nenhum campeão de xadrez foi tão popular – nem mesmo Bobby Fischer, apesar da mídia que o promoveu durante anos, até voltar-se contra ele. Quanto aos enxadristas, os cognomes dados ao cubano - “o xadrez” e “a máquina” - demonstram a admiração que ele provocava. 

Capablanca havia iniciado sua trajetória aos 13 anos, em 1901, com sua vitória, num match amistoso, sobre o então campeão cubano, Juan Corzo y Príncipe. Em 1909, o campeão norte-americano Frank Marshall, que dois anos antes enfrentara Lasker pelo título mundial, ouviu falar de um jovem cubano que estudava engenharia na Universidade de Columbia, um enxadrista amador que fazia sensação com suas vitórias. Foi acertado um match entre ambos. Para surpresa geral, Marshall foi derrotado, e por um placar que não poderia deixar margem a dúvidas: Capablanca venceu o match de 23 partidas com 8 vitórias, 14 empates e apenas uma derrota.

Marshall, que naquele mesmo ano começara seu reinado no campeonato dos EUA (foi campeão norte-americano 26 vezes consecutivas, até renunciar ao título, em 1935) ficou abismado. Dois anos depois, convenceu o cubano a se inscrever no Torneio de San Sebastián, que reuniu, em 1911, todos os jogadores mais importantes do mundo, com exceção apenas do campeão mundial, Emanuel Lasker. Mas a inscrição de Capablanca provocou uma tempestade entre os participantes. Alguns deles protestaram pela inclusão de um desconhecido entre a nata do xadrez mundial, sobretudo o ucraniano Ossip Bernstein e o letão Aaron Nimzowitsch – este, o teórico da escola “hipermoderna”, que estava, então, contestando os princípios clássicos do xadrez, sobretudo a ocupação do centro com peões, preconizada por Steinitz e seu sucessor em teoria, Siegbert Tarrasch.

Bernstein e Nimzowitsch argumentavam com a diferença de categoria entre Capablanca e os demais. Porém, graças ao apoio de Marshall, a inscrição do cubano foi aceita. Na primeira partida, coube a ele enfrentar, justamente, Ossip Bernstein. Venceu-o inapelavelmente, assim como, depois, a Nimzowitsch. Ao final, Capablanca triunfou em seu primero torneio internacional com o quase incrível – para qualquer jogador, mas sobretudo para um iniciante - score de 6 vitórias, 7 empates e apenas 1 derrota.

Porém, Lasker ainda era o maior jogador do mundo, o que foi confirmado em 1914, no Torneio de St. Petersburgo, contra o próprio Capablanca. No primeiro confronto entre ambos, o cubano perdeu na final, quando lhe bastava um empate para conseguir o primeiro lugar. Esse torneio é famoso também por outra razão: em St. Petersburgo foi instituído o título de “Grande Mestre” (GM) para os principais jogadores de xadrez do mundo. A origem do título não é das melhores: foi distribuído pelo czar Nicolau II aos cinco primeiros colocados no torneio – Lasker, Capablanca, Alekhine, Tarrasch e Marshall. Mas seria adotado depois pela Federação soviética e pela FIDE (sigla de Fédération Internationale des Échecs – a entidade internacional do xadrez, fundada em 1924, que será parte decisiva da história que estamos contando).

Após a I Guerra Mundial, era indiscutível a primazia de Capablanca no xadrez mundial. Até mesmo se formulara, entre os enxadristas, o “problema Capablanca”. Tal problema resumia-se no seguinte: como obter uma linha de jogo que derrotasse o cubano? Foi o primeiro oponente de Capablanca, Frank Marshall, que levou mais à frente a tentativa de resolver esse “problema”. Inventou, para isso, o famoso “gambito Marshall” (os enxadristas também o chamam de “variante Marshall da abertura Ruy López” ou “variante Marshall da abertura espanhola”, mas evitamos esses e outros termos porque este artigo não é dedicado somente aos aficcionados do jogo). No entanto, quando, em 1918, no Torneio de Nova Iorque, Marshall, outra vez enfrentando Capablanca, usou a linha que havia laboriosamente preparado durante vários anos, o cubano demorou pouco tempo para encontrar, no 16º lance, a única jogada que o salvava da cilada – e ganhou mais uma partida contra Marshall. [O leitor que se interessar pelo assunto poderá encontrar, na Internet, várias análises desta partida; recomendamos a do professor costarriquenho Mário Valverde López – porém, há outras igualmente excelentes.]

Em 1921, quando Lasker enfrentou Capablanca pelo título mundial, havia poucas dúvidas sobre qual seria o resultado. O próprio campeão havia previsto a vitória de Capablanca (um ano antes, havia escrito ao desafiante: “você ganhou este título não através de um desafio formal, mas através das suas brilhantes capacidades”). Conhecendo a trajetória de Lasker, antes e depois desse match, certamente não o fez por intimidação.

Capablanca venceu com 4 vitórias, 10 empates e nenhuma derrota. Foi o único match pelo título mundial onde um dos contendores não perdeu uma única partida. Tal fato somente se repetiria em 2.000, quando Vladimir Kramnik venceu Kasparov, mas este não era um match pelo título oficial, como veremos.

Consagrado pela vitória, um dos problemas que se colocou Capablanca foi, precisamente, o da seleção de seu próximo desafiante. Para ele, a regra segundo a qual o campeão escolhia seu oponente havia chegado ao limite. Mas isso é o que veremos na próxima edição. 

Carlos Batista Lopes